sábado, 28 de setembro de 2013

Fernando Eduardo Carita - Para António Ramos Rosa

Ligados 
por uma pétala de Rosa 
ou por um ramo de Louro, 
os poetas per-seguem-se 
até para além do infinito
José Maria Laura


                           3
             A caminho, a casa
0.1

Qual a direcção exacta
Para permanecer agora fora do encalço crescente
Do deserto ?

De onde começar a viver ?
De onde começar o caminho ?

A quem oferecer o meu jejum
E a minha sede ?
A quem doar
O meu único pão ?
A quem legar
A minha casa ?

E quem há-de depois ficar
Para cuidar apenas dos lírios póstumos
Do meu jardim ?
Fotografia de JoséMariaLaura

*
 « Vivre sans vivant, comme mourir sans mort:
écrire nous renvoie à des propositions énigmatiques »
                                                          Maurice Blanchot
  
                                               Para António Ramos Rosa
  
Continuava a insistir do fundo estreito da queda
Essa mais íngreme voz
Que não terei por certo caído ainda o suficiente
À medida imposta pelo silêncio para a trasladação da palavra ao
dizer,
Sempre um melro precede por cada morte mais recuada
A abnegação do seu próprio canto,
Tempo recobrado e agora devolvido às palavras
Como animais despertos e crucificados
À tua única ferida sempre fiel que nada te havia prometido,
Não por uma qualquer fala tua chegarei a
reconhecer-te
Nem mesmo em redor da tua voz que ignora o teu primeiro nome,
Não porque não vejas ainda as coisas já todas
acontecidas
Deverás presumir que não terão porventura acontecido,
Tudo aconteceu, apenas não adveio,
Tudo aconteceu já até ao último instante,
Tudo aconteceu já até ao último melro
E a vida toda afinal tão-só para poder ouvi-lo
Porque ver crescer a árvore é ofício clandestino do relâmpago;
E são os cães então cegos a regressar do futuro com a ossatura
Fissurada
Dos teus passos perigosamente reclinados
Sobre um espelho surdo-mudo com imagens
Iminentes porém de advento numa consumada anterioridade
futura,
Estão os poetas também desmesuradamente atentos
Em agudas intenções de descida;
A uma janela que é futuro em relação ao resto da casa
Riposta a sombra de uma árvore
Faltando-lhe apenas advir o melro
A uma distância de três manhãs consecutivas
Só para te confirmar e desnomear.
*
Sempre mais improvável cada dia
Que sare sobre o olhar essa cicatriz aí abandonada por um mero
descuido
Da morte em suas manobras quotidianas de extracção de luz e
abismo,
Descias entretanto por noite escura um caminho estreito sem
sinalização adequada
De estar a vida ainda em fase terminal de reparação;
Algures já só o som estridente de uns dados a rolar até
à exaustão
De suas premeditadas combinatórias,
Sem outra alternativa que não seja participares também tu desse jogo
clandestino,
Em vez de dados terias de lançar as mãos
Perante a indiferença altaneira
De teus parceiros,
O deus e também a sua ausência agora em incestuosa cumplicidade
Furiosamente atirando uns contra os outros seus viciados eternos
dados,
De um único lance se te exige que obtenhas agora
De cada dado essoutro rosto sempre oculto
Apenas com uma simples trajectória da mão no vazio de um
tabuleiro paralelo;
Para sempre mudo se ganhares,
Para sempre silencioso se perderes,
Em ambos os casos
O deserto.


LA MAISON, LE CHEMIN
A Casa, o Caminho
Édition bilingue
Le Taillis Pré, 2008

AQUI:


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